
Acervo pessoal
O jornalista Ruleandson do Carmo Cruz, técnico de nível superior (TNS) da UFMG, foi um dos vencedores do 3º Prêmio MOL 2024, que reconhece série de reportagens com impacto social. A premiação foi concedida pela produção realizada em parceria com o também jornalista e sonoplasta Breno Rodrigues, sobre a cultura da doação e os direitos de pessoas em situação de rua, intitulada “Às margens das urnas, abaixo da democracia: o voto e as pessoas em situação de rua”, na categoria Jornalismo Tradicional (Áudio). O prêmio é uma iniciativa do Instituto MOL e reconhece jornalistas, comunicadores e estudantes cujas produções fortalecem a cultura de doação, a solidariedade e o papel das organizações da sociedade civil na promoção da cidadania.
A série de reportagens destaca a exclusão de pessoas em situação de rua do processo eleitoral, apontando que a falta de moradia não deve ser barreira para o exercício da cidadania. “A nossa matéria vai além do senso comum da doação”, afirma Ruleandson. “Ela discute a importância de incluir pessoas em situação de rua nos processos democráticos, mostrando a solidariedade como um instrumento para garantir os direitos de todos, independentemente da sua condição social.”
O trabalho foi veiculado pela Rádio UFMG Educativa, que reafirma, com o reconhecimento, seu compromisso com uma comunicação pública crítica e voltada para a transformação social. “Estar entre os finalistas já foi uma grande vitória, especialmente porque nossa reportagem se distanciava da abordagem tradicional da cultura de doação”, disse o jornalista.
A premiação também destaca a atuação dos TNS da UFMG em áreas como jornalismo, pesquisa e extensão, reforçando o papel desses profissionais na produção de conhecimento e na promoção da cidadania.
A ATENS UFMG parabeniza o jornalista Ruleandson do Carmo e comemora a conquista como um exemplo do impacto social que pode ser alcançado a partir do trabalho realizado dentro da universidade.
A reportagem está disponível em: https://soundcloud.com/radioufmgeducativa/sets/as-margens-das-urnas-abaixo-da ou em
https://open.spotify.com/show/4FrX3oJj8QBGJQh0U728q8
A seguir, uma entrevista com o Ruleandson do Carmo, sobre a premiação.
1 – O Prêmio MOL destaca reportagens que promovem a cultura da doação. Como a sua produção se conecta com essa proposta?
R: Nossa reportagem foi produzida em conjunto com meu colega Breno Rodrigues, também jornalista e sonoplasta da série premiada. Ela se conecta com a questão da solidariedade e da cultura de doação, mas não de forma clássica ou óbvia. Quando pensamos em cultura de doação, normalmente associamos à doação de órgãos, sangue, alimentos, roupas, itens de higiene, adoção de animais ou crianças. A nossa abordagem vai além disso, discutindo a importância da solidariedade em um contexto mais amplo, que inclui a inclusão das pessoas em situação de rua nos processos democráticos. A matéria apresenta o trabalho de uma ONG chamada São Paulo Invisível, que fundou um partido fictício – o PSPI (Partido de São Paulo Invisível) – convidando pessoas em situação de rua para apresentarem suas plataformas, caso fossem eleitas presidentas da República. Também abordamos o trabalho do Padre Júlio Lancelotti, pedagogo e sacerdote, que atua no apoio e devolução da dignidade às pessoas em situação de rua. A matéria discute como essa ONG tem conseguido oferecer empregos para essas pessoas. Ao final, a reflexão que queremos provocar não é sobre o ato de doar, mas sobre como a sociedade exclui essas pessoas, deixando-as à margem do processo democrático. O título da reportagem reflete isso: “A sociedade abaixo da democracia”. A reportagem questiona a eficácia da nossa Constituição em garantir direitos básicos como moradia, voto, dignidade e saúde para todos.
2 – Qual foi o ponto de partida para abordar o direito ao voto das pessoas em situação de rua? De onde veio essa ideia?
R: Estava indo votar no primeiro turno em Belo Horizonte, no bairro São Luís, e vi uma pessoa em situação de rua, conhecida da região onde eu morava, gritando que havia vendido o voto e votado. O que mais me assustou não foi tanto a venda do voto, mas o fato de que uma pessoa em situação de rua estava participando do processo eleitoral. Eu nunca havia considerado que essas pessoas realmente votavam. Isso me fez questionar: será que essas pessoas têm a documentação necessária, como o título de eleitor? Será que elas conhecem as propostas e sabem quem são os candidatos? Não pensei apenas no voto daquela pessoa, mas no voto de todas as pessoas em situação de rua. Como elas são tratadas nesse processo? Elas têm acesso a informações sobre os candidatos? Muitas dessas pessoas não acompanham os candidatos, pois não têm acesso a rádio, TV ou até mesmo smartphones para acompanhar as campanhas. A partir disso, conversei com o Breno, sugerindo que fizéssemos uma reportagem sobre o direito ao voto das pessoas em situação de rua. Assim nasceu a série, com o objetivo de desconstruir alguns conceitos sobre o tema.
3 – Durante a apuração, o que mais te marcou nas histórias que ouviu?
R: O que mais me marcou foi o fato de muitas dessas pessoas não acompanharem o processo eleitoral. Elas realmente não sabiam quem eram os candidatos, a não ser os que estavam na disputa presidencial, como Lula e Bolsonaro, mas, em cargos como prefeito e vereador, muitas nem sabiam quem eram os candidatos. Algumas não consideravam sequer a possibilidade de votar. Elas estavam completamente à margem do processo. As campanhas eleitorais ocorrem principalmente em rádio e TV, mas essas pessoas não têm acesso a esses meios de comunicação. Mesmo que o direito ao voto seja garantido, muitas delas não acreditam que alguém eleito fará algo por elas. O mais triste foi perceber que essas pessoas estavam sem esperança, sem acreditar que o processo democrático pudesse trazer algo de positivo para suas vidas.
4 – A série de reportagens fala de solidariedade de forma mais estrutural. Por que isso é importante no jornalismo?
R: Precisamos refletir sobre o conceito de solidariedade. É fácil pensar que ser solidário é apenas fazer uma boa ação no Natal, como doar uma cesta básica ou roupas. Claro, isso é importante e ajuda as pessoas, mas não deveria ser necessário. O Estado é quem deve garantir os direitos básicos a todas as pessoas. Há estudos que mostram que o salário mínimo deveria ser muito mais alto do que é atualmente, cerca de 7 mil reais, mas hoje estamos muito longe disso. Como servidor público, sei das dificuldades que enfrentamos, especialmente nós, técnicos administrativos da educação, que temos uma das piores carreiras no funcionalismo federal, com mais de sete anos sem reajustes. E se é difícil para nós, imagina para as pessoas que não têm uma vaga no serviço público, vivendo com um salário mínimo. A verdadeira solidariedade vai além de dar algo para alguém, mas garantir que ninguém precise de doações. Devemos lutar por mudanças estruturais para que as pessoas não precisem mais viver à margem da sociedade, sem acesso aos seus direitos fundamentais.
5 – O que foi mais difícil: encontrar fontes, ganhar a confiança delas ou traduzir o tema em uma linguagem acessível?
R: O maior desafio foi o processo de ir às ruas, abordando pessoas em situação de rua. Existe um certo medo, especialmente no centro de Belo Horizonte, que tem se tornado cada vez mais perigoso. Usávamos os celulares para fazer a produção e sempre estávamos com receio de sermos furtados. Também havia a questão ética, porque não podemos pagar para alguém dar uma entrevista. Várias pessoas em situação de rua pediram dinheiro ou comida em troca da entrevista, e isso gerou um dilema ético para nós. Foi difícil lidar com essa realidade e, ao mesmo tempo, não criar falsas expectativas nas pessoas, pois sabíamos que, infelizmente, não podíamos mudar a situação delas, apenas trazer à tona essa discussão.
6 – Vocês concorreram com produções de todo o país. Estar entre os finalistas já era uma vitória?
R: Com certeza. Fomos a única rádio universitária finalista, competindo com veículos grandes como a CBN, TV Globo e outros nomes consagrados da mídia brasileira e latino-americana. Já estar ali, entre os finalistas, foi uma grande conquista. Além da premiação, tivemos a oportunidade de participar de um curso sobre racismo ambiental e de contribuir com um guia coletivo. Também fomos convidados para publicar em uma revista, mas posso passar o nome dela depois. O fato de estar em São Paulo, no MASP, assistindo a palestras sobre jornalismo de rua, foi um grande acontecimento, independentemente da vitória. Mas, claro, ser premiado foi uma surpresa maravilhosa e um reconhecimento ao nosso trabalho, que foge da abordagem óbvia da cultura de doação.
7 – Você mencionou no discurso que as rádios universitárias estão sucateadas. O prêmio ajuda a jogar luz sobre isso?
R: Espero que sim. O vídeo do meu discurso já tem mais de 7 mil visualizações no Instagram, o que mostra que a mensagem está alcançando muitas pessoas. As rádios universitárias foram sucateadas pelos governos Temer e Bolsonaro e ainda não receberam a atenção necessária do governo Lula. Precisamos que o governo federal invista novamente nessas rádios, pois elas desempenham um papel fundamental na comunicação pública. Atualmente, há uma medida que impede a realização de concursos para cargos de comunicação nas universidades, o que prejudica a qualidade do trabalho. Precisamos de mais investimentos e de espaços dignos para trabalhar, com equipamentos atualizados e infraestrutura adequada, para que possamos continuar fazendo um trabalho de qualidade. A Rádio UFMG Educativa, por exemplo, é uma das mais premiadas do estado, mas se tivéssemos mais recursos, poderíamos chegar ainda mais longe.
8 – Foi simbólico receber esse reconhecimento justamente no Dia do Jornalista?
R: Foi extremamente simbólico. A premiação foi realizada no Dia do Jornalista, o que tornou o momento ainda mais emocionante. Estar ali com colegas de profissão celebrando o jornalismo foi muito especial. É importante que continuemos a valorizar o jornalismo profissional no Brasil, especialmente em um momento em que estamos enfrentando um ataque a essa profissão, com a desvalorização do diploma e a proliferação de “produtores de conteúdo” que, muitas vezes, não têm a mesma formação e ética jornalística. O jornalismo profissional tem um papel fundamental na luta contra a desinformação, e é essencial que a sociedade reconheça isso.
9 – A reportagem tem um forte teor político e social. Você acredita que o jornalismo universitário tem essa missão?
R: Com certeza. O jornalismo universitário tem a liberdade de fazer esse tipo de trabalho, sem amarras com anunciantes ou interesses políticos. Trabalhamos em um espaço público e, por isso, temos a responsabilidade de divulgar o que está errado na sociedade e dentro das próprias instituições. O jornalismo universitário deve ser crítico, inclusive em relação à sua própria universidade, e é isso que fazemos. Não podemos ser coniventes com o que está errado, e precisamos exercer nosso papel de fiscalizadores da sociedade, sempre com liberdade e autonomia.
10 – Depois dessa conquista, o que você espera para o futuro da comunicação pública e do jornalismo feito dentro da universidade?
R: Espero que, com mais essa premiação conquistada pela Rádio UFMG Educativa, as pessoas reconheçam a qualidade do nosso trabalho. Que mais investimentos sejam feitos para que possamos ter as condições adequadas para realizar nosso trabalho com dignidade. A comunicação pública tem um grande potencial, e é importante que o governo federal e o MEC percebam isso e liberem concursos para cargos de comunicação nas universidades. A comunicação pública deve ser valorizada, pois é ela que garante um jornalismo de qualidade, sem interesses comerciais, voltado para a população. É isso que esperamos para o futuro.
Foto: Breno Rodrigues (à esquerda) e Ruleandson do Carmo seguram o troféu do Prêmio Mol – Acervo pessoal